quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Pequenos ritos em Paris, por Zeca Camargo




Reproduzo a seguir um artigo publicado na Folha de São paulo no dia 11 de setembro passado por Zeca Camargo, 51 anos, jornalista, apresentador do 'Vídeo Show', da TV Globo, e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' (2004) e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil' (2006).

Brigitte não sabe que é minha musa. Desconfio que ela nem sabe da minha existência. A não ser por uma garrafa de Calvados que meu irmão certa vez me trouxe, autografada por ela, duvido que Brigitte tenha perdido sequer um minuto pensando na minha pessoa. Aliás, não tenho certeza nem se seu nome é Brigitte (mesmo que tenha o escrito naquela dedicatória), mas é assim que eu a chamo desde que, numa madrugada de um frio sádico, eu pedi a ela que me servisse o último copo do dia. De Calvados, claro.

Simplificando, Calvados é um "conhaque de maçãs", produzido na região da Baixa Normandia. E é forte. O nocaute já vem no olfato –o nariz sempre o recebe antes da boca. Brigitte serve a todos com um velado entusiasmo –sua figura, uma espécie de negativo da Capitu de "Dom Casmurro": tudo nela lembra ressaca, menos os olhos atentos. Se vou a Paris, passo pelo bairro do Marais para vê-la no La Belle Hortense –um bar graciosamente compartido com uma livraria. E tomo ao menos uma dose.

Esse pequeno ritual soma-se a outros tantos que eu gosto de cumprir na cidade. Também tenho "mania" de ir à Sainte-Chapelle e fazer uma oração qualquer –sempre me lembrando da peça que meu tio que me levou lá pela primeira vez pregou: depois de mostrar o ligeiramente convencional piso térreo, ele perguntou sem entusiasmo se eu queria ver o andar de cima; subi sem vontade até que fui surpreendido pelos vitrais mais incríveis de uma cidade que não tem escassez deles.

Gosto ainda de revisitar a primeira Fnac que conheci, em Les Halles, com seus infindáveis corredores de livros e discos –que naqueles idos dos anos 80, ainda eram de vinil. Lembro-me especialmente de um diálogo inusitado com alguém que conheci na sessão de música brasileira, que me perguntava se eu gostava de Paris; eu, com meu francês ainda tosco, tentava explicar que sim, mas que minha paixão mesmo era, na época, Londres –numa típica confusão de tradução entre os verbos "amar" e "gostar".

Se passo pelo Louvre, faço um desvio rápido até a Rue du Pelicán –endereço do albergue que fiquei nos meus tempos "de mochila". E, quando posso, vou ainda à torre –aquela torre!– que uma noite fui revisitar por impulso, pedindo ao motorista do táxi (num francês já mais polido), que desviasse do caminho do hotel e levasse aquele apaixonado casal (do qual eu fazia parte) para ver as luzes cintilando naquela estrutura de ferro.

Afinal, a graça maior de Paris é poder apresentá-la a alguém –uma lição que aprendi na minha estreia na cidade. Foi com minha tia Beatriz, mulher do tio (Mario) que me mostrou a Sainte-Chapelle. Antes dos vitrais, antes da torre, antes de tudo, no primeiro dia que cheguei –aos 16 anos–, ela me levou para passear de carro por aquelas ruas deslumbrantes. Era já noite e eu não sabia para onde olhava! Percebendo meu encantamento, tia Beatriz perguntou casualmente se eu estava gostando. Eu mal sabia o que responder. Ela então disse: "Eu sei como é, eu tenho inveja de quem conhece Paris pela primeira vez".

Parece um comentário arrogante, mas foi das coisas mais generosas –e sábias– que ouvi dessa minha tia que é até hoje muito querida. Ela não falou num tom esnobe, mas com uma genuína nota de saudade, dos primeiros momentos que viveu por lá ainda moça, e podia reviver então na excitação do meu olhar. E é isso que eu procuro também quando viajo ou encontro com alguém que está sendo apresentado a um canto da cidade –ou a ela toda!

Mas já que essa sensação eu não posso mesmo reproduzir, que a experiência de se apaixonar por Paris possa sempre ser revisitada no Calvados de Brigitte. Não vejo a hora de poder tomar o próximo copo.

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