domingo, 24 de agosto de 2014

A Paris de Julio Cortázar



O jornalista correspondente Fernando Eichenberg, de O Globo, publicou ontem (23), uma boa matéria sobre a Paris mítica, metafórica e inspiradora do flanêur Julio Cortázar, que encantado por suas ruas, passagens e museus que fez da Capital francesa cenário e personagem de seus romances e contos. Abaixo reproduzo e recomendo a leitura, segue o texto:

"PARIS - “Paris é uma mulher, e é um pouco a mulher da minha vida”, disse Julio Cortázar certa vez. O escritor viveu na capital francesa por 33 anos, de 1951 até a sua morte, em 1984. A cidade — onde desembarcou pela primeira vez com uma bolsa do governo francês e depois se tornou tradutor da Unesco — é repleta de referências cortazarianas, biográficas e bibliográficas.

“Meu mito de Paris atuou em meu favor, me fez escrever um livro, ‘O jogo da amarelinha’, que é um pouco a encenação de uma cidade vista de uma maneira mítica. Toda a primeira parte que se passa em Paris é a visão de um latino-americano perdido em seus sonhos a passear em uma cidade que é uma imensa metáfora”, confessou no filme “Julio Cortázar (1979/80)”, de Alain Caroff e Claude Namer.

“Caminhar por Paris significa avançar até mim”, descreveu o flâneur Cortázar. Suas distrações pela cidade criavam “constelações mentais e sentimentais”, estabelecendo uma linguagem própria, segundo ele de difícil explicação verbal, mas que se refletiam em sua literatura.

“Se pensa conhecer Paris, mas isso não existe. Há recantos, ruas que se poderia explorar o dia inteiro, ainda mais à noite. É uma cidade fascinante. Não é a única. Mas Paris é como um coração que bate todo o tempo. Não é o lugar onde vivo, é outra coisa. Estou instalado neste lugar onde existe uma espécie de osmose, um contato vivo biológico”, definiu no documentário.

SELEÇÃO DE “LOCAIS PRIVILEGIADOS”

Em Paris, a poesia está na rua, e a menina que anuncia o jornal pode ser sua musa, escreveu ele na orelha do livro “Paris ou la vocation de l’image” (“Paris, ou a vocação da imagem”), com 127 imagens clicadas por seu amigo e fotógrafo brasileiro Alécio de Andrade (1938-2003). “Pode ocorrer que encontremos de repente personagens famosos que sempre admiramos. Assim como no Le Dôme se diria que Sartre segue sentado perto de nós, também James Baldwin pode se dirigir até a nossa mesa, enquanto David Hockney adormece no La Coupole, onde nos refugiamos depois de uma festa. Paris se oferece a nós em todas as suas formas, e nos dá as imagens infinitas de suas noites e seus dias”.

Em uma entrevista ao canal espanhol TVE2, Cortázar evocou primeiro na memória de sua relação de “locais privilegiados” da cidade a Pont Neuf. “Ao lado da estátua de Henrique IV, há ao fundo uma luz, e à meia-noite, quando não há ninguém, este canto, solitário, é para mim uma tela de Paul Delvaux. Há este sentimento de mistério dos quadros de Delvaux, esta iminência de algo que pode aparecer, se manifestar, numa situação que nada tem a ver com as categorias lógicas dos acontecimentos ordinários”.

Já os subterrâneos parisienses, inspiração para alguns de seus escritos, integram uma singular significação de temporalidade: “O metrô sempre foi para mim um lugar de passagem, onde o sentimento de tempo muda. No conto ‘O perseguidor’, aliás, um personagem descobre que o tempo é completamente diferente quando se está no metrô e na superfície. Este é um sentimento, uma experiência, que tenho pelo menos uma vez a cada quinze dias”, revelou, na mesma entrevista à televisão.

As estreitas e charmosas passagens cobertas da cidade francesa, que acolhem comércio e restaurantes, também fazem parte do roteiro cortazariano, entre elas a Galeria Vivienne. O escritor se alegrou em poder conhecê-la exatamente como a frequentou, no século XIX, o poeta uruguaio Lautréamont: “Eram lugares assombrados de Lautréamont, no bairro da Bolsa. Todas estas galerias cobertas que fazem uma Paris completamente mágica e misteriosa. É isso que chamo ‘mítico’”. Em seu “percurso de Cortázar” em Paris, elaborado para o Instituto Cervantes, o catalão Carles Álvarez Garriga, co-editor de sua obra póstuma, acrescentou: “Em seu insuperável relato ‘O outro céu’, a galeria parisiense se comunica física e sincronicamente no século XIX com a portenha Galería Güemes da Calle Florida do século XX. E, dali sai uma investigação metafísica-policial que se deve ler pelo menos uma vez ao ano”.

Garriga cita vinte locais em sua resumida excursão, que se inicia na derradeira morada do escritor em Paris, no número 4 da rua Martel, no bairro Châteu d’Eau, e se encerra no cemitério de Montparnasse, onde Cortázar repousa ao lado de Carol Dunlop, sua última mulher. O Museu do Louvre, onde Cortázar fez seu “aprendizado do olhar”, segundo Garriga, não poderia ficar ausente da lista. Em 1951, ano de sua chegada na cidade, o escritor ganhou um passe livre permanente para o Louvre, e frequentou o museu quase diariamente até 1953. “Dedicou todas as tardes, durante dois anos, o que soma cerca de seiscentas visitas ao Louvre”, escreve Garriga, autor também do livro “Cortázar de A a Z”. “Na correspondência com seu amigo Eduardo Jonquières, que naquela época vivia em Buenos Aires, contou: ‘Comecei a visita dos sumérios’. E um mês depois: ‘terminei a sala dos sumérios, passo para a dos fenícios’. Isso significa que gastou oitenta horas para olhar uma pequena estatueta de uma princesa suméria. Estava fascinado pela arte primitiva”.

Há ainda a Pont des Arts, um dos emblemáticos lugares do início de “O jogo da amarelinha”, lembra Garriga, onde o protagonista Horacio Oliveira costumava encontrar a Maga. Ou o restaurante Polidor, no número 41 da rua Monsieur Le Prince, palco da cena inicial de “62 modelo para armar”, estabelecimento fundado em 1845 e que não aceita pagamento com cartão de crédito. “Quem vistá-lo, não deve deixar de ir ao toalete e pensar que aquele mesmo mictório foi utilizado por Raymond Queneau ou Boris Vian para fins não menos nobres”, acrescenta o guia cortazariano.

No número 150 do Boulevard Saint Germain está o café Old Navy, um dos poucos no bairro a permanecer aberto na madrugada. Cortázar ali sentava-se para beber algo e escrever. No outono de 1956, o jovem colombiano Gabriel García Márquez soube que o escritor, a quem admirava, frequentava o local. O futuro prêmio Nobel de Literatura passava tardes no café na esperança de um dia encontrá-lo, até que um dia avistou Cortázar entrar “como uma aparição”, mas não ousou se apresentar. “Eu o vi escrever por mais de uma hora sem parar, sem uma pausa para pensar, sem beber nada mais do que meio copo de água mineral, até que começou a escurecer lá fora, guardou a caneta no bolso e saiu com o caderno embaixo do braço como o estudante mais alto e magro do mundo”, escreveu García Márquez.

Na Paris de Cortázar há ainda a Casa da Argentina, na Cidade Universitária, seu primeiro endereço na capital francesa; a livraria La Hune, uma de suas preferidas; a residência de Baudelaire, no Quai d’Anjou, primeiro local que visitou ao chegar à cidade; o prédio da Unesco, onde trabalhava; a biblioteca Arsenal, que frequentava; a Praça Dauphine, a Ponte do Carroussel ou o parque Montsouris, entre tantos outros lugares que poderiam ser mencionados. Mas a “imagem secreta” de Paris, escreveu ele, “somente nos será revelada ao término de uma tenaz fidelidade, quando souber que não vivemos nela por viver, que não andamos nela por rotina”.


Cortázar, sobre a Pont Neuf: ‘há ao fundo uma luz, e à meia-noite, quando não há ninguém, este canto, solitário, é para mim uma tela de Paul Delvaux’
Foto: Divulgação





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