terça-feira, 9 de julho de 2013

Paris: onde Maio de 1968 ainda não acabou

O jornalista correspondente Fernando Eichenberg, de O Globo, publicou nesta última quinta (4), uma excelente reportagem sobre as  famosas manifestações de rua em Paris - as "manifs", que reproduzo e recomendo a leitura, segue a peça:


Milhares de manifestantes se reúnem na Praça da Bastilha em maio de 2002 em demonstração contra o então candidato de ultra-direita, Jean-Marie Le Pen
Foto: Eric Feferberg/afp/1-5-2002

Pelas ruas de Paris, em meio às manifestações

Protestos em ruas e praças da capital francesa, e seus impactos nos transportes públicos, integram a paisagem e o dia a dia da cidade

PARIS - Além de queijos, vinhos, baguettes e a Torre Eiffel, pode-se acrescentar mais um clichê ao cotidiano parisiense: as manifestações. Não há uma semana sem que as ruas da cidade não sejam tomadas por cidadãos das mais diferentes origens, de nacionalidades e organizações, com uma multitude de propósitos e reivindicações. Com faixas, cartazes, palavras de ordem, vozes naturais ou amplificadas por megafones, eles não poupam nenhum bairro da capital francesa, e podem ser apenas uma dezena ou reunir milhares de pessoas.

Manifestação, segundo uma definição clássica, significa “demonstração coletiva pública de uma opinião”. O parisiense sabe que a qualquer momento poderá se deparar com um cortejo em defesa de algum pleito. E mesmo o turista acidental já não se surpreende com as aglomerações nas vias e praças, parte integrante da paisagem citadina. As perturbações no trânsito e nos transportes públicos por conta dos constantes protestos também já foram incorporadas ao dia a dia da Cidade Luz.

Segundo as autoridades policiais de Paris, mais de 500 mil pessoas foram às ruas em 2011 num total de 3.655 manifestações, classificadas oficialmente em “estudantis, sociais e políticas”. O flâneur de hoje verá iranianos, turcos, argelinos ou tunisianos exigindo maior liberdade política em seu país; grupos de extrema-direita acusando o governo socialista de François Hollande; militantes de esquerda criticando a extrema-direita; grupos em defesa dos direitos humanos em luta contra o racismo e o fascismo; associações exigindo direitos para imigrantes ilegais; e também brasileiros expatriados em solidariedade aos protestos em curso no Brasil.

Os temas abordados formam um mosaico: desemprego, reivindicações salariais, lobby financeiro, defesa dos animais, ecologia, nuclear, poluição, preços dos aluguéis, aposentadoria, alimentação saudável, sexismo, abertura do comércio aos domingos, creches, antitabagistas, ruídos dos bares noturnos.

Em meio a multidão, Baudelaire inspira o ‘flâneur’

Neste ano, mobilizações na capital francesa reabriram o debate sobre o controle da ordem pública durante protestos e eventos festivos. As passeatas contra a aprovação do casamento homossexual levaram centenas de milhares de pessoas às ruas e exigiram um atenção especial dos serviços de polícia, principalmente do CRS (Companhias Republicanas de Segurança), brigada de choque responsável pela manutenção da ordem durante as manifestações.

O protesto programado para 26 de junho mobilizou 4.500 policiais para a vigilância de 150 mil participantes, segundo as estimativas das forças de ordem, e mais de um milhão, de acordo com os organizadores. A função do CRS é a de garantir o direito de manifestação e a liberdade de deslocamento dos participantes da passeata, segundo um trajeto preestabelecido.

Para conter os excessos, os policiais dispõem de escudos e equipamentos de defesa, e do uso de armas não letais, como bombas de gás lacrimogênio e jatos d’água. A utilização da pistola de bala de borracha foi limitada como recurso de extrema defesa após um incidente ocorrido em 2005, numa manifestação em Montreuil, no subúrbio de Paris, em que um homem perdeu um olho e o policial responsável pela agressão foi indiciado por “violência voluntária levando a enfermidade ou mutilação”.

A lei exige um pedido oficial dos manifestantes às autoridades francesas, com um prazo de 15 a três dias anteriores à data prevista da passeata e a assinatura de pelos menos três organizadores responsáveis. A polícia analisará o motivo do protesto, avaliará o número possível de pessoas presentes, e autorizará o local solicitado ou determinará um outro que julgar mais apropriado. Apesar disso, tem crescido o número de manifestações espontâneas, organizadas clandestinamente e com a ajuda das redes sociais, principalmente em horários noturnos.

Atenta aos novos tempos, a polícia francesa estabeleceu novos mecanismos de vigilância para antecipar as intenções do manifestante-surpresa e poder deflagrar um controle em regime de urgência em tempo hábil.

A manifestação surgiu como um elemento intruso da modernidade urbana no século XIX para se tornar quase uma rotina na Paris de 2013. Ao turista menos habituado e mais receoso, fica o conselho simbólico do poeta parisiense Charles Baudelaire (1821-1867) ao definir o perfeito flâneur em “O pintor da vida moderna”: “A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Normas para publicação: acusações insultuosas, palavrões e comentários em desacordo com o tema da notícia ou do post serão despublicados e seus autores poderão ter o envio de comentários bloqueado.