sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A gastronomia de Nice além da Salade Niçoise

Vista da bela e agitada Promenade des Anglais, o principal calçadão de Nice. Boa Viagem / O Globo
O repórter Bruno Agostini, de O Globo, publicou ontem (quinta, 15 e atualizou hoje), uma excelente reportagem sobre os restaurantes de Nice, na Riviera Francesa, que reproduzo e recomendo a leitura, segue a peça:


Em Nice, o caminho das estrelas da Riviera Francesa

Um roteiro que destaca cozinha mediterrânea, arquitetura e praias com influência italiana
NICE - Dirigir de Nice a Èze é um perigo. Não exatamente por conta da estrada sinuosa que serpenteia pela montanha, com curvas estreitas espremidas entre o abismo e a parede abrupta de pedra, mas devido à paisagem deste trecho da Riviera Francesa. Durante boa parte do trajeto, de menos de 15 quilômetros, o cenário é tão encantador que desvia a atenção do motorista, e a foto da capa desta edição não me deixa mentir. Por sorte não faltam mirantes para estacionarmos o carro e admirar o litoral com a calma que ele merece. (veja aqui mais imagens)

Do alto, vemos vilarejos e cidadezinhas costeiras, como Villefranche-sur-Mer e St-Jean-Cap-Ferrat, com suas marinas repletas abrigando alguns dos iates mais espetaculares do Mar Mediterrâneo e também barquinhos de pescadores. Alguns navios de cruzeiro estão fundeados mais distantes do litoral. Nos dias claros o sol realça os diversos tons que o mar nos apresenta nas águas de temperatura amena da Riviera Francesa.

Sem trânsito, não demoramos mais do que 30 minutos para chegarmos à Èze, estrategicamente localizada em um promontório vertiginoso, com panorama privilegiado e um centro antigo cheio de charme que abriga restaurantes estrelados, hotéis, pousadas, lojinhas e muitas galerias de arte. Seguindo pela mesma estrada cênica que acompanha o traçado do litoral, cerca de 17 quilômetros adiante chegamos novamente em menos de meia hora a Menton, já na fronteira com a Itália, onde encontramos o restaurante Mirazur, um desses raros endereços que, sozinhos, já justificam uma viagem.

Tempero italiano na Côte d’Azur

Acomodado no Le Relais, bar do clássico hotel Negresco, saboreio o ambiente elegante, a trilha sonora apropriada e um dry martini impecável. Poltronas de couro, mesas baixas de madeira, tapetes e um piano de cauda compõem um cenário digno dos muitos artistas que historicamente sempre frequentaram o local. O músico dedilha os teclados com um repertório que, repentinamente, se encharca de músicas brasileiras. Jobim, Benjor e outros nomes da MPB se revezam no set list. A seleção etílica está à altura do que se espera de um bom bar, com coquetéis clássicos, como negroni e gim tônica, preparados à perfeição (e preços na faixa dos € 18).

Mesmo que não tivesse tais predicados, o bar do Negresco poderia ser classificado como endereço fundamental para entender Nice. Porque sentar ali, ainda que por breve período, é uma das maneiras mais fáceis de se visitar o hotel, um ícone da cidade, um cartão-postal, praticamente um museu, com peças bizarras e outras engraçadas — muitas delas ocupando o imenso salão arredondado com uma linda cúpula, repleto de obras de arte, muitas de gosto duvidoso — e uma pequena exposição sobre a história do lugar, onde não faltam elementos que podemos classificar de kitsch, como os banheiros de decoração extravagante (imperdíveis) e a coleção de cadeiras de barbeiro.

Outra possibilidade é marcar um jantar no restaurante Chantecler, dono de duas estrelas Michelin, que serve receitas como lagostins grelhados com molho de pimenta de Espelette ou outras mais exóticas, como pedaços de cabeça de vitela crocantes, com menus que custam entre € 58 e € 140.

Se o Negresco está para Nice como o Copacabana Palace para o Rio (e ambos pertencem à associação The Leading Hotels of the World), a Promenade des Anglais, onde fica o hotel, é a Avenida Atlântica da cidade. Pelo seu calçadão circulam e se misturam moradores e turistas, caminhando, correndo ou pedalam na ciclovia. Em vez de quiosques há barracas de praia, loteamentos privados, quase sempre pertencentes aos hotéis que ficam defronte a eles, com estrutura impressionante, incluindo grandes cozinhas, cadeiras, mesas e guarda-sóis. Parar em alguma delas, como a Galeon Plage, faz parte do ritual turístico niçoise, nem que seja apenas para beber uma taça de rosé. O chão de pedras da praia não é dos mais convidativos, porém o mar azul de águas tranquilas e de temperatura amena do Mediterrâneo é aquele mesmo que deu fama à região, e nadar ali não é nada mau.

À certa altura da Promenade des Anglais encontramos o Jardin Albert 1er, que passa por reformas para ser reinaugurado mês que vem. O lindo projeto paisagístico inclui o maior espelho d’água da Europa, com espetáculos diários de água e luz. As obras prometem transformar o bar da cobertura do hotel Aston em um dos pontos mais badalados da cidade, com sua vista privilegiada para a grande esplanada que, emendando com a Promenade du Paillon, se converte em uma aprazível área de pedestres, marco divisório, onde começa Le Vieux-Nice, o centro antigo da cidade.

É justamente ali um dos pontos mais agradáveis de Nice, com prédios de estilo tipicamente italiano, como os que encontramos na Ligúria, revelando a origem conturbada da cidade, marcada por guerras, anexações e diversos tratados. Até meados do século XVIII, Nice, e todo o restante da porção oriental da Riviera Francesa, pertenceram ao Ducado de Saboia e, posteriormente, ao reino do Piemonte-Sardenha, da Casa de Saboia, embrião do estado italiano.

A História explica muito a respeito da cidade hoje com um milhão de habitantes, a começar pelo apelido Nissa La Bella, além da gastronomia e da arquitetura. As placas com os nomes das ruas na área histórica são escritas em francês e niçardo, a língua local, mais próxima do italiano que do francês. A Cours Saleya é uma praça comprida, no coração da área histórica, repleta de restaurantes bares e cafés com mesas externas. Abriga um colorido e perfumado mercado de flores e alimentos, que às segundas-feiras cede lugar para barracas de antiguidades com ótimas peças, mas de preços altos.

O verão de Matisse

O clima, as cores e o estilo de vida da Côte d’Azur sempre atraíram legiões de artistas à região, muitas vezes durante o inverno, fugindo do frio das áreas mais ao norte da Europa. Entre os nomes que viveram em Nice, ou passaram longos e produtivos períodos ali, estão Claude Monet, Edvard Munch e Henri Matisse, o mais niçoise entre os pintores famosos ligados à cidade. Além de ter morado em Nice, em vários locais, inclusive residindo no Hôtel Beau Rivage, Matisse viveu também em Cimiez, bairro chique nas montanhas que envolvem Nice, onde está enterrado. Na Avenue des Arènes de Cimiez fica o Museu Matisse (musee-matisse-nice.org), que completa 50 anos com uma série de exposições, em cartaz até 23 de setembro, celebrando a sua obra.

Marc Chagall morou em St-Paul-de-Vence, perto dali, e também andou por Nice, que abriga um museu com seu nome (musee-chagall.fr), na Avenue Docteur Menard, que mantém mais de 250 peças criadas por ele, com destaque para as que exploram a temática bíblica.

Saladas, alevinos e rosés

Falar de cozinha francesa é algo genérico que reúne sob uma mesma expressão uma série de receitas regionais que acabaram consagradas mundo afora pela hotelaria, e pelos bistrôs. O que existe mesmo é a culinária regional: a provençal, a alsaciana e a bretã, entre outras, representando cada parte do país, com cardápios muito diferentes entre si de acordo com os ingredientes e as tradições locais.

Apenas duas cidades apresentam uma cozinha própria, com identidade bem particular, Lyon, a capital gastronômica do país, e Nice, combinando elementos da vizinhança: a culinária niçoise seria uma interseção mediterrânea entre a Provence e o Norte da Itália, com influências do Piemonte e da Ligúria. Ou seja, algo delicioso, quase sempre leve, baseado em matéria-prima sazonal, explorando o frescor, combinando pescados os mais diversos, massas, azeites, ervas e muitos legumes e verduras.

Emblema maior dessa riqueza gastronômica com alicerces na simplicidade, a salada niçoise é um ícone, servida apenas nos meses mais quentes do ano com os vegetais disponíveis na feira, todos crus, incluindo ervas, legumes, folhas e flores (alcachofra, de abobrinha), com atum em conserva, alici e ovo cozido, além de azeite. Muito comum em bares e restaurantes, o pan bagnat é uma espécie de sanduíche de salada niçoise, e vale por uma refeição.

Encontrar uma niçoise perfeita não é difícil, porque a matéria-prima está ali, disponível durante todo o verão. Porém, alguns lugares fizeram fama por oferecer uma receita impecável, baseada, como deve ser, na simplicidade. Caso do Chez Palmyre, na Rue Droite, no centro antigo, lugar conhecido por servir o receituário niçoise como preparado em casa, com destaque para a tal salada, que vai maravilhosamente bem com vinhos rosados da Provence, ou, então, melhor ainda, com um Bellet, a pequena denominação local, com vinhedos nas montanhas dos arredores de Nice.

Nessa mesma rua encontramos o Acchiardo, outra referência fundamental em termos de cardápio niçoise, comandado por uma família, com pai e filhos se dividindo no serviço, com simpatia e preços acessíveis (a salada niçoise custa € 9, e os pratos do dia, como um tagliatelle com azeitonas e pato, sai por menos de € 15).

Falando em cozinha tradicional, o restaurante La Merenda é o mais concorrido. Não aceita reservas nem cartões de crédito, vive cheio, com mesas espremidas no pequeno salão. Pilotando a cozinha está o chef Dominique Le Stanc, que deixou uma carreira sólida no Chantecler, do hotel Negresco, para abrir a sua própria casa, onde serve clássicos de Nice, incluindo as poutines, que são alevinos, quase sempre de sardinhas, também conhecidos como nonnat. São servidos tradicionalmente de várias maneiras: em omeletes, enriquecendo sopas ou simplesmente depositados, crus, sobre uma torradinha, e qualquer semelhança com a bruschetta não é mera coincidência. A Itália é logo ali.

Outra iguaria emblemática que compõe a dieta essencial do turista é a pissaladière, encontrada em todo canto, uma espécie de pizza com cobertura de cebolas, cozidas longamente, até virarem quase uma pasta, levemente caramelizada, que contrasta com o sabor salgado de anchovas e azeitonas pretas. Perfeita para um lanche rápido, a iguaria é vendida em padarias, para se comer na rua. As que formam fila são as mais confiáveis, caso da La Fougasserie, entre a Rue de la Prefecture e a Cours Saleya.

Na feira que acontece na Cours Saleya, a personagem mais famosa é Theresa, que virou celebridade por servir a melhor socca da cidade, um disco de massa feita com grão de bico e assada em forno a lenha, mais uma iguaria típica da cozinha niçoise (o pedaço custa € 2,50).

Representando uma linhagem mais moderna da cozinha de Nice, de caráter mais autoral, o restaurante Luc Salcedo tem o tamanho exato para ter um chef na cozinha, e a sua mulher, e uma ajudante, no salão. Não deixe de reservar, porque a cozinha cuidadosa de Salcedo apresenta receitas que exploram com criatividade e boa técnica os ingredientes locais. O cozinheiro que batiza a casa é craque no preparo de terrines (a de pato ao curry é incrível), e o menu varia regularmente, servindo receitas como carpaccio com vinagrete ao pesto e vegetais crocantes. As entradas custam € 16; os pratos principais, € 26, e as sobremesas € 12, e também existem menus degustação por € 45 ou € 65.

A uma curta caminhada do centro antigo, a área do porto é outro aglomerado de bons restaurantes. Peixes e frutos do mar são elemento comum nas cozinhas de Nice. Mas poucos tratam os pescados com tanto cuidado como o chef Michel Devillers, do L’Ane Rouge, que mostra orgulhosamente aos clientes a matéria-prima sempre fresca que recebe diariamente, e em seguida transforma em receitas simples, de execução segura, como o filé de trilha sobre guacamole, e o lombo de bacalhau fresco com molho de tomate.

Além de tudo, ainda tem a vista (peça uma mesa do lado de fora), que fica ainda mais linda ao anoitecer, com os barquinhos balançando nas águas, as luzes da cidade se acendendo e o céu se pintando de azul.

Para aprender a cozinhar e a fazer perfume

Para quem quer não só provar as delícias da cozinha de Nice mas também botar a mão na massa e aprender algumas receitas locais, a canadense Rosa Jackson, criadora da Les Petits Farcis — que faz passeios gastronômicos e oferece aulas de cozinha — tem a fórmula exata. O programa começa na Cours Saleya, quando selecionamos os ingredientes do menu, que pode ser escolhido de acordo com a preferência do participante.

Queria uma salada niçoise, e compramos tudo o que precisávamos para a receita. No caminho para a casa onde acontecem as aulas, ainda paramos na Lou Froumaï, incrível loja de queijos locais. Na cozinha do apartamento, no coração do centro antigo de Nice, todos arregaçaram as mangas para preparar o cardápio do dia: salada niçoise, bouillabaisse e torta de limão.

Ainda em Vieux-Nice, a Parfumerie Molinard organiza aulas para ensinar a criar perfumes, usando cerca de 200 essências de base, combinadas em fórmulas únicas. No final, levamos um frasco para casa, e ainda podemos encomendar de novo, através do site, com entrega no Brasil.

SERVIÇO

ONDE FICAR

West End: Tradicional hotel de 170 anos. Diárias a € 189. 31 Promenade des Anglais, Nice. hotel-westend.com

Hôtel Negresco: Destaque para o restaurante Le Chantecler e a La Rotonde Brasserie. Diárias para casal a partir de € 410. 37 Promenade des Anglais, Nice. hotel-negresco-nice.com

Clarion Grand Hôtel Aston: Oferece belas vistas para a cidade. Diárias para casal a partir de € 144. 12 Avenue Felix Faure, Nice. hotel-aston.com

Beau Rivage: Matisse morou neste hotel. Diárias a partir de € 149. 24 Rue Saint-François de Paule, Nice. hotelnicebeaurivage.com

ONDE COMER

Chez Palmyre: 5 Rue Droite, Nice. Tel. (33) 4-385-7232.

Acchiardo: 38 Rue Droite, Nice. Tel. (33) 4-9385-5116.

La Merenda: 4 Rue Raoul Bosio, Nice. lamerenda.net

Luc Salsedo: 14 Rue Maccarani, Nice. Tel. (33) 4-9382-2412. restaurant-salsedo.com

AULAS

Les Petits Farcis: As aulas são realizadas para grupos entre duas e sete pessoas, e custam €195 por pessoa, incluindo o almoço, com vinho. petisfarcis.com

Molinard: Os workshops de perfumaria custam € 59. 20 Rue St François de Paule, Nice. Tel. (33) 4-9362-9050. molinard.com

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