"Rive Gauche" passa o dia-a-dia de Paris e da França, com estilo leve, distraindo e levando o leitor à um passeio pela Cidade Luz e seus arredores. Nasceu como uma coluna dominical publicada no Jornal do Brasil e depois migrou para dois sites com atualizações semanais, o www.investimentosenoticias.com.br e o www.annaramalho.com.br e, além disso, conta com atualizações neste blog e no Facebook.
domingo, 25 de janeiro de 2015
O multiculturalismo falhou na França?
O jornalista correspondente Fernando Eichenberg, de O Globo, publicou hoje uma excelente matéria no Globo Online com o filósofo e ex-ministro da Educação Luc Ferry sobre o fracasso da adoção pela França do multiculturalismo, o que segundo ele transformou o país hoje no maior alvo do terrorismo islâmico. Abaixo reproduzo e recomendo a leitura, segue o texto:
"PARIS — O filósofo e ex-ministro da Educação Luc Ferry defende o modelo republicano francês como superior ao multiculturalismo adotado por países como a Inglaterra e a Alemanha. Na sua opinião, o sistema francês não fracassou, mas foi abandonado após maio de 1968. A França é hoje, segundo ele, o país mais visado no mundo pelo islamismo radical, e deve se preparar para enfrentar a ascendência política interna da extrema-direita.
Você diz que a França é o país mais ameaçado no mundo hoje. Por quê?
Por três razões. A primeira é que temos as maiores comunidades judia e muçulmana da Europa, no mesmo território. Temos entre 5 milhões e 8 milhões de pessoas que são de origem cultural muçulmana. E porvavelmente em torno de 1 milhão de judeus na França. É algo muito singular. Temos aqui refrações particulares do conflito do Oriente Médio. A segunda razão é que temos operações militares exteriores. Houve intervenções na Líbia, no Mali, na República Centro-Africana etc. A França está engajada na luta contra o islamismo radical no exterior. E a terceira razão é que a França é, historicamente, o país da laicidade. E para os islamistas a laicidade significa a sua própria morte. Eles querem o califado, sistemas políticos religiosos. E a França é a separação absoluta da religião e da política, Nos Estados Unidos se tem “In God we trust” nas notas de um dólar, algo totalmente inimaginável na França. Estamos num país em que a laicidade é praticamente sagrada. E por todas estas razões, penso que os problemas estão à nossa frente, e não atrás de nós. E está claro que somos o alvo do Estado Islâmico e da al-Qaeda.
A França é um caso à parte na Europa?
Nós nos recusamos em organizar a França em comunidades, como foi o caso na Inglaterra ou na Alemanha. Eu sou totalmente favorável à integração, mas infelizmente desde 1968 renunciamos progressivamente ao princípio da laicidade republicana à francesa. A república francesa não fracassou, mas foi abandonada. Abandonamos a ideia republicana na França em prol de uma rendição crescente ao multiculturalismo. Foi assim que se constituíram guetos, o que deveríamos ter impedido. Malek Boutih (deputado socialista, ex-presidente da ONG SOS Racismo), quem aprecio muito, diz que há uma centena de guetos na França que são zonas interditadas e que deixamos serem constituídas. Nós abandonamos os princípios republicanos, sob o efeito das ideologias do direito à diferença, multiculturalistas, de direito de minorias. Nós nos americanizamos. Fizemos como países que aceitaram que existam comunidades competamente sepradas umas das outras. Em Nova York, você tem Little Italy, Chinatown etc. Aceitamos estes guetos se constituírem, o que é um escândalo absoluto. Sou totalmente contrário a isso. Em Seine-Saint-Denis (subúrbio norte de Paris), as famílias judias não colocam mais seus filhos em escolas públicas, o que não é normal, mas uma vergonha para a França.
Fala-se há décadas da falência do modelo de integração francesa...
O que é um grave erro. O modelo de integração não falhou, foi abandonado, o que não é a mesma coisa. É porque foi abandonado que não funciona. Há uma coalizão de direita e de esquerda contra a ideia republicana. Daniel Cohn-Bendit e Nicolas Sarkozy entraram nessa ideologia de discriminação positiva.
Este contexto favorece a extrema-direita na França?
Isso é evidente. Não há nenhuma dúvida disso. A Frente Nacional (FN, partido da direita radical) está esfregando as mãos. Há 20 anos que eles dizem que há uma islamização da França e perguntam quantos irmãos Kouachi há no país hoje. Quando vemos certos alunos em escolas de determinados bairros dizerem “Eu sou Kouachi” e que sentem simpatia com o Estado Islâmico, a FN tira consideráveis benefícios. Muitos jovens colocam no mesmo plano uma blasfêmia no papel e um massacre de metralhadora. Podemos discordar completamente do “Charlie Hebdo”, mas não podemos colocar no mesmo nível de armas mortais. Essa situação reforça consideravelmente a FN. São os extremos que se reforçam, como sempre. E é calamitoso.
A escola francesa retornou ao centro dos debates. Qual a sua análise?
O problema da escola é similar: deixamos de lado os princípios republicanos após maio de 1968. E neste caso a direita e a esquerda, de novo, estão na mesma linha. Hoje os professores não têm mais nenhum tipo de autoridade diante de jovens que se recusam a assistir a cursos sobre o Holocausto ou fazer um minuto de silêncio em homenagem às vítimas dos atentados. Há um problema maior a ser resolvido. E penso que a melhor maneira é abordá-lo desde a escola primária. A crianças pequenas ainda não estão revoltadas, não estão com ódio. Deixamos as coisas à deriva por 40 anos, e hoje estamos pagando o preço.
O governo quer reforçar o ensino moral e cívico nas escolas. Você defende que o aprendizado do conhecimento não impede a barbárie...
Este é o grande ensinamento do nazismo. A Alemanha nazista era o país mais culto do mundo, com um sistema educativo de excelente desempenho, e foi o país mais bárbaro do mundo. Era a pátria de Kant, de Goethe, de Schubert, de Bach, e foi o país do nazismo e de Hitler. Osama bin Laden era também culto e inteligente, tinha doutorado de uma universidade americana. A imagem do nazista que tortura sua vítima escutando Schubert, infelizmente, é verdadeira. Pode-se ser extremamente culto e um canalha, e pode-se ser um pequeno camponês dos confins do Brasil e ser um homem de bem. A educação moral e a intelectual são completamente diferentes.
Você considera a imigração um falso debate na França?
A imigração não é o problema, não são os estrangeiros. O problema está relacionado à colonização, a jovens que são franceses há três gerações, e que infelizmente se identificam com o Estado Islâmico e a al-Qaeda. Não são imigrantes, eles são franceses. É preciso parar com este discurso sobre a imigração. O problema atual é a refração das guerras externas — EI, al-Qaeda, Oriente Médio — no interior de bairros franceses, em jovens de três ou quatro gerações de imigrantes que se revoltam contra a França, defendem o islamismo radical e querem ir fazer a jihad na Síria. E devemos aceitar o fato que fomos nós que colonizamos o Magreb, não foram eles que vieram para cá primeiro.
Qual a influência da política externa francesa nos atuais acontecimentos?
Penso que tivemos razão em não intervir no Iraque junto com os americanos. Penso que a intervenção na Líbia foi uma catástrofe. O Mali é discutível, não se podia deixar Bamako tombar nas mãos do islamismo. Fora isso, constato que há 20 anos nossas operações no exterior terminam sistematicamente em catástrofe. Deveríamos refletir sobre os efeitos perversos que produzimos em nossas intervenções em nome dos direitos humanos. Nove em cada dez de nossas intervenções plenas de boas intenções produzem efeitos calamitosos. Sou extremamente cético em relação a isso. Não acredito mais que se possa impor a democracia de fora. Acreditei, mas me enganei.
Você é pessimista em relação ao futuro imediato francês?
O que, apesar de tudo, me deixa um pouco otimista foram essas manifestações do 11 de janeiro. Foi algo extraordinário. Não houve uma vontade de eliminar as diferenças, a direita e a esquerda existem; judeus, católicos e muçulmanos também, mas houve este sentimento de que em frente ao horror e à morte havia valores superiores. Isso é a res publica, a república. Deste ponto de vista, não sou pessimista. Marine Le Pen (líder da FN) não será eleita. Ela estará no segundo turno das eleições presidenciais de 2017, mas não vencerá, este é o meu prognóstico. O sucesso da FN não é algo anedótico, não é fogo de palha, mas a França manterá seus princípios republicanos. Mas hoje estamos engajados numa guerra assimétrica, na qual não há um Estado contra outro, mas pequenos grupos organizados contra Estados. É uma guerra na qual não há critério de vitória nem de derrota, não há assinatura de tratado de paz. São guerras subterrâneas e longas. É o que viveremos nos próximos anos. Por isso, não podemos ceder para a extrema-direita e nem confundir muçulmanos e islamistas.
Não há risco de que, passada a emoção e com o retorno à tona da crise econômica e do desemprego, essa união se deteriore?
A Europa, a França incluída, possui todos os meios de se tornar a primeira potência econômica mundial. As escolhas são políticas. O debate direita-esquerda é legítimo, mas ele não deve ser feito sobre a produção, e sim sobre a redistribuição. Sobre a produção, os liberais têm razão, eles conhecem melhor economia do que os socialistas. Mas deve-se debater a redistribuição das riquezas, a igualdade. Deve-se ser liberal em economia e socialista na política. É a melhor solução."
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