Em sua coluna "Volta ao Mundo", publicada ontem (17) no jornal O Globo, a jornalista Helena Celestino decupa um mal que aflige aos franceses, sobretudo aos parisieneses. Vale a leitura e segue o artigo.
Em francês, s’il vous plaît
Sentimento de desencanto domina Paris; golpe na autoimagem já os deixou menos arrogantes
As pesquisas comprovam e a cada visita a gente relembra: os franceses são o povo mais pessimista do planeta. Um sentimento de desencanto domina Paris diante da constatação que empregos, poder, savoir vivre e ideias estão migrando para lugares mais acolhedores e dinâmicos. Este tradicional malaise francês ameaça transformar-se em revolta diante de uma nova ameaça à identidade nacional: depois de lentamente perder espaço no mundo dos livros, no universo fashion e virar apenas uma reminiscência nos encontros internacionais, o francês não é mais a língua oficial nem no Tour de France, uma francesíssima invenção que, ao se tornar universal, adotou o inglês nas conversas com jornalistas e entre esportistas — só os comunicados oficiais mantêm as duas línguas. Mas tem pior: para horror dos puristas, no início do ano letivo, em setembro, as universidades francesas estarão liberadas para dar alguns cursos em inglês.
O golpe na autoimagem já os deixou menos arrogantes. “Obrigado pela gentileza, obrigado por falar francês conosco”, derramou-se um locutor do Tour de France para Chris Froome, o líder da corrida que domina o pódio e o noticiário esportivo nessas últimas semanas. “Bravo pelo seu francês, me disse um entrevistado monoglota, delicadeza impensável há poucos anos, quando qualquer boulangère corrigia a pronúncia de forasteiros pedindo duas baguettes. A professora e escritora Julia Kristeva, nascida na Bulgária mas considerada uma glória da cultura francesa, sempre reclamou que até hoje os franceses faziam questão de perceber um pequeno sotaque na sua fala. Orgulhosos da língua e da cultura que já dominaram o mundo, os franceses combateram enquanto foi possível a invasão do inglês: uma comissão de sábios da Academia Francesa encarregada de rebatizar as inovações tecnológicas atrasou os neologismos — computador em francês é ordinateur, software chama-se logiciel — mas a velocidade digital não combina com reuniões e longas discussões sobre sutilezas da língua.
O país está dividido. O jornal “Libération”, em editorial alertou que estava na hora de a França parar de se comportar como os últimos representantes de uma aldeia gaulesa, cercada por invasores. Mas “projeto suicida” foi a etiqueta colada pela direita, com apoio de alguns intelectuais acima de classificações políticas. “Se o francês não pode expressar tudo, ele já é uma língua virtualmente morta”, emendou o filósofo Michel Serres.
Multiculturalismo ou americanização, disfarçada de globalização? Esta é a pergunta que está por trás da polêmica, a mesma que inspira a discussão da exceção francesa defendida com ardor pela indústria criativa e torpedeada como reacionária pelo presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. Com o argumento de que um filme não é igual a uma batata e um CD não é parecido com um sapato, a França ameaça vetar o mega acordo de livre comércio entre Estados Unidos e Europa se a produção audiovisual do país não ficar fora do tratado. Ou seja, os franceses defendem o direito de subsidiar e proteger sua indústria criativa da força arrasadora de Hollywood e, agora, também de Netflix, Apple, Amazon e Google — os novos players que simplesmente ignoram as leis locais.
Desta vez, a França não está sozinha contra o mundo. Cineastas famosos como os ingleses Ken Loach e Stephen Frears, o espanhol Pedro Almodóvar e o alemão Wim Wenders saíram em defesa de salvaguardas para o cinema europeu. Estão todos preocupados que seus filmes — já de difícil exportação na língua nativa e com espaço reduzido no mercado dos blockbusters — sejam derrubados por longas e concertos disponíveis a qualquer momento, em casa, por uma fração do preço do ingresso de cinema em Paris ou Berlim.
“Cultura é uma das poucas indústrias que está indo bem, mesmo na crise. E cultura cria um link social, é um dos traços definidores da Europa”, disse Michel Hazanavicius, presidente da sociedade de diretores-produtores e roteiristas, numa entrevista à radio.
Governos europeus subsidiam produtos culturais — de museus a teatros e tradução de livros — porque seus eleitores sentem-se beneficiados com isso. Claro que “Mad Men”, “Homeland” e “Sex and the City” fazem sucesso em Paris ou Madri, mas os filmes americanos ocuparam 43% do mercado francês contra 61% na média da Europa. É uma escolha a ser feita, nem sempre fácil. Lutar contra o inglês como língua dominante é inútil, mas preservar a diversidade cultural e as culturas nacionais não só é imprescindível, como um ótimo negócio.
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