O jornalista correspondente Fernando Eichenberg, de O Globo, publicou hoje, uma boa matéria sobre a redescoberta da artista francesa Niki de Saint Phalle sua exposição que conta com mais de 200 de seus trabalhos e documentos de arquivos. Abaixo reproduzo e recomendo a leitura, segue o texto:
"Catherine Marie-Agnès Fal de Saint Phalle veio ao mundo em 1930, no subúrbio chique de Neuilly-Sur-Seine, na França, no berço de uma família franco-americana aristocrata e de banqueiros em falência pela crise financeira de 1929. Na contramão do destino que lhe fora programado — o papel de esposa submissa aos códigos sociais —, tornou-se Niki de Saint Phalle, artista autodidata politicamente engajada, militante feminista e autora irreverente de uma vasta e original obra, geralmente desconhecida do público em sua totalidade. A mostra inaugurada nesta semana pelo Grand Palais na capital francesa, em cartaz até fevereiro de 2015, promove ao mesmo tempo a redescoberta da artista e do personagem, com a exibição de mais de 200 de seus trabalhos e documentos de arquivos em um espaço de 2 mil m².
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O nome Niki de Saint Phalle evoca comumente as célebres “Nanás”, sua série de bonecas gigantes, alegres e coloridas, parida nos anos 1960; a Fonte Stravinsky, incontornável conjunto de 16 esculturas instalado ao lado do Centro Pompidou, em Paris — criado com a colaboração do escultor suíço Jean Tinguely (1925-1991), seu parceiro artístico e também amante —; ou o seu Jardim dos Tarôs, concebido entre 1979 e 1993, na Toscana. Mas sua arte vai muito além disso, ressalta Camille Morineau, curadora da exposição e também autora de um breve ensaio sobre Saint Phalle:
— É uma artista violenta, rebelde, política, de uma radicalidade incrível, que se interessou muito pelas questões de seu tempo. Foi uma das primeiras artistas feministas, e tinha um discurso provocador, por vezes propositalmente caricatural e com humor para enfrentar o mundo machista da época. Além das conhecidas “Nanás”, existem suas séries “Noivas”, “Mães devoradoras” ou a poética “Partos”, por exemplo.
Pintora, escultora, desenhista, gravurista, cineasta experimental, a bela Niki de Saint Phalle posou como modelo de capa de revistas como “Vogue”, “Elle” ou “Harper’s Bazaar”; inventou performances; participou das origens da pop art; lutou contra a discriminação racial e pelos direitos cívicos americanos; se engajou no combate à Aids — fez inclusive um livro infantil educativo sobre o tema —; e foi uma das pioneiras no uso da mídia para divulgar suas ideias e sua arte.
— Foi uma mulher corajosa, vinha de um meio burguês e aristocrata, rebelou-se contra a herança familiar e entrou na vida boêmia de um grupo de artistas do bairro parisiense de Montparnasse, sem dinheiro no início e numa vida difícil, na qual produziu uma arte subversiva para a época — sustenta Morineau.
Casada em Nova York em 1949, aos 19 anos, com o norte-americano Harry Mathews, três anos depois ela deixou os Estados Unidos da caça às bruxas do comunismo em pleno Macartismo para se instalar na França. Em 1953, em meio a uma crise depressiva, foi internada por seis semanas no hospital psiquiátrico de Nice. Diagnosticada pelos médicos como esquizofrênica, sofreu um tratamento de choques elétricos. Neste período, fez suas primeiras pinturas e também colagens com elementos buscados no jardim do hospital.
— Ela teve uma grave depressão nervosa. Foi erroneamente diagnosticada como esquizofrênica. E é no hospital que decide se tornar uma artista. A partir deste momento , ela se “cura”. É via seu trabalho criativo que veiculará as suas fortes emoções, a paixão, a violência, em toda sua amplitude — diz a curadora.
CALAFRIOS POR GAUDÍ
“Pintar acalmava o caos que agitava minha alma. Era uma forma de domesticar os dragões que sempre surgiram em meu trabalho. Sem isso, prefiro nem pensar no que poderia ter me acontecido”, escreveu a artista em “Harry and me — The family years”, uma de suas obras autobiográficas. Em uma temporada na Espanha, ficou impressionada diante de obras de Goya, Brueghel, El Greco e Jérôme Bosch no Museu do Prado, em Madri. Mas seu grande choque artístico ocorreu na visita ao parque Güell, projetado por Antoni Gaudí (1852-1926), em Barcelona. “No parque Güell, senti calafrios, raios. Tremia por tudo. Naquele dia, meu destino estava claro. Sabia que um dia também faria, do meu jeito, um jardim de felicidade”, disse numa entrevista.
Sua reputação artística debutou, no entanto, com sua série “Tiros”. Em 12 de fevereiro de 1961, em seu ateliê parisiense no Impasse Ronsin, protagonizou a primeira de suas numerosas sessões com sua carabina de cano longo calibre 22. Disparava contra objetos cuidadosamente escolhidos, grudados em uma tela e cobertos por uma camada de gesso que tinha em seu interior sacos de plástico repletos de tinta. O impacto dos projéteis liberava as cores e criava a obra instantânea. Após assistir à performance de estreia, o crítico de arte Pierre Restany convidou Saint Phalle a ser a única mulher a integrar o grupo dos Novos Realistas, formado por artistas como Yves Klein, Arman, César e Martial Raysse, além do próprio Tinguely, e que se autoproclamava herdeiro de Marcel Duchamp, do movimento dadaísta e do surrealismo (mais tarde, ela se tornaria amiga de Jasper Johns e Robert Rauschenberg, dois nomes da pop art americana).
“Imaginava a pintura se pondo a sangrar. Ferida, da forma como as pessoas podiam ser feridas. Para mim, a pintura se tornava uma pessoa, com sentimentos e sensações”, escreveu em uma de suas cartas imaginárias. Para Camille Morineau, a série de tiros alcança um significado social e político:
— Ela atira contra Kruschev, Kennedy, De Gaulle (
na obra “King Kong”, de 1963, referência aos líderes implicados nos conflitos mundiais e um alerta contra a ameaça nuclear), contra a representação do patriarcado e a religião — assinala.
“NOVA SOCIEDADE MATRIARCAL”
Em sua denúncia do fracasso do comunismo e do capitalismo, Saint Phalle reclamava por uma “nova sociedade matriarcal”, e após os tiros se dedicou a esculpir “grandes criaturas à glória da mulher”. Em 1966, apresentou em Estocolmo, na Suécia, sua monumental e efêmera naná “Hon”, uma “deusa pagã da fertilidade” de 28 metros de comprimento, seis metros de altura e nove metros de largura, pesando seis toneladas. A escultura abrigava no seio direito um planetário, e no outro, um milk-bar equipado com um triturador de garrafas de Coca-Cola; no braço esquerdo foi instalado um cinema que projetava o primeiro filme de Greta Garbo; em uma das pernas, as crianças podiam brincar de tobogã, e a vagina foi desenhada como a porta de entrada. Em três meses, cerca de cem mil visitantes formaram filas para penetrar no que foi chamado de “a maior puta do mundo”.
A denúncia da opressão e dominação masculina também se introduziu em sua arte por uma trágica experiência pessoal: aos 11 anos, foi abusada sexualmente pelo pai. “O verão das serpentes foi aquele em que meu pai, este banqueiro, este aristocrata, colocou seu sexo na minha boca”, escreveu em 1994, aos 63 anos, em “Meu segredo”, livro em que revela publicamente a agressão. Antes, em 1972, havia dirigido e protagonizado o filme “Daddy”, no qual dispara contra a imagem do pai na obra “A morte do patricarca”.
— Ela não quis contar isto antes porque temia que sua arte fosse vista através desse episódio, o que não seria justo — argumenta Morineau. — É verdade que viveu essa violência pessoalmente, mas é um tema que de toda maneira iria abordar em seu trabalho. Tive oportunidade de ver o reverso da tela em questão, e pode-se perceber onde ela mirou os tiros: nas partes genitais e no coração.
Niki de Saint Phalle morreu em 21 de maio de 2002, pelo agravamento de sua insuficiência respiratória crônica. Em sua autobiografia, “Traces” (1999), anotou: “Decidi desde cedo que seria uma heroína. Quem seria? George Sand? Joana d’Arc? Um Napoleão de saias? Que importa! O importante é que foi difícil, enorme e excitante!”.