Em novo livro, historiador Robert Darnton mostra como versos eram utilizados nas intriga da Corte em Versalhes e circulavam em complexas redes de comunicação pelas ruas da cidade |
François Bonis era estudante de Medicina. Jean Edouard, Inguimbert de Montange e Alexis Dujast eram padres. Jacques Marie Hallaire era estudante de Direito. Denis Louis Jouret era escrevente. Lucien François du Chaufour era estudante de Filosofia. O elo de ligação entre todos esses homens na Paris de 1749 era a ode “O exílio de M. Maurepas”. Isso foi o suficiente para que fossem interrogados, jogados em celas da Bastilha por anos e tivessem suas vidas arruinadas no episódio conhecido como “Caso dos catorze”. A pasta com os documentos relativos ao episódio foi encontrada pelo historiador americano Robert Darnton, diretor da biblioteca da Universidade de Harvard, enquanto fazia uma pesquisa sobre outro tema nos arquivos da Bastilha, hoje guardados na Biblioteca Nacional da França.
Atraído pelo nome sugestivo, o pesquisador resolveu dar uma espiada nos papéis e descobriu a história de uma implacável perseguição policial a um poema que fazia pesadas críticas ao Rei Luís XV. O primeiro verso, o único que restou do texto original, era “Monstro cuja fúria negra” e foi considerado crime de lesa-majestade. A pesquisa resultou no livro “Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII” (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo), que acaba de ser lançado no Brasil. A obra traz as tramas palacianas da Corte francesa e reconstrói as complexas redes de circulação de poemas e canções existentes na época.
— Eu nunca tinha ouvido falar do “Caso dos catorze”, assim como ninguém. Instantaneamente fiquei fascinado por essa história de detetive. Os interrogatórios foram conduzidos pelo tenente-general da polícia, um cargo equivalente ao do ministro do Interior hoje, para você ver a importância dado a ele. Trata-se de um enorme dossiê, e percebi que estava seguindo um trabalho de detetive da polícia do século XVIII, mas não só. Estava fazendo o meu próprio trabalho de detetive com outro propósito, que era entender como essas redes de comunicação funcionavam — diz Darnton, em entrevista ao GLOBO por telefone, de Boston.
O pesquisador explica que o Conde de Maurepas foi um dos mais poderosos ministros da história da França. Ele serviu ao governo por 36 anos e chegou a acumular os cargos de ministro da Marinha, da Casa Real e a chefia do departamento de Paris. Contudo, em abril de 1749, Maurepas foi demitido e exilado pelo rei, o que desencadeou uma série de mudanças em Versalhes. O motivo foi a circulação cada vez mais intensa, tanto na Corte quanto nas ruas, de poemas e canções cheias de referências ácidas a uma das amantes reais, Madame de Pompadour. Na mais polêmica delas, havia um jogo de palavras com doenças venéreas.
Com essa queda, o conde D’Argenson, que ocupava o posto de ministro da Guerra, assumiu a chefia do ministério real. Aliado de Pompadour, foi dele a ordem para desencadear a investigação sobre a autoria do poema que atacava Luís XV e sua amante. O historiador afirma que a utilização de canções para atingir os adversários era prática corrente na Corte. O próprio Maurepas os utilizou amplamente para manter o seu poder. Sua coleção de poemas obscenos sobre os reis Luís XIV e Luís XV somam 42 volumes, hoje guardados na Biblioteca Nacional da França sob o nome de “Chansonnier Maurepas”. Os textos, segundo o professor, eram vistos como sinais da opinião do povo sobre o soberano.
— Havia muitas linhas de comunicação entre mundos que, a princípio, parecem completamente separados, como Versalhes e as ruas de Paris. Toda a sociedade do Antigo Regime parece diferente quando se observa como esse sistema de comunicação operava.
Darnton afirma que, ao longo do século XVIII, os cafés, os mercados e as ruas da capital francesa eram inundados todos os dias por centenas de poemas e canções que faziam uma verdadeira crônica da vida nacional numa sociedade marcada pelo analfabetismo. No “Caso dos catorze”, os textos eram copiados à mão em pequenos pedaços de papel e depois guardados em cadernos ou então decorados e recitados de memória. No livro, o historiador desenha um diagrama a partir das informações coletadas durante a investigação policial. Era impossível saber quem compôs os versos. Uma das razões é que, a cada cópia, estrofes inteiras eram apagadas ou incluídas. Há diversas versões diferentes do mesmo texto.
Em alguns casos, os poemas vinham com indicações de melodias conhecidas sobre as quais deveriam ser cantados. Durante sua pesquisa, o historiador conseguiu localizar partituras dessas músicas. A partir delas, gravações foram feitas pela cantora Hélène Delavault e disponibilizadas na internet como um complemento à obra (www.hup.harvard.edu/features/darpoe). Darnton brinca que seu livro “é sobre a internet antes da internet”.
— Temos uma ideia ingênua hoje de que nós criamos a Era da Informação, como se outras épocas também não o fossem. Claro que em cada uma delas, a informação circulou de acordo com os meios disponíveis. Quando você olha as redes que operavam em Paris, a maneira como as mensagens viajavam de uma pessoa para outra, como não pensar na internet hoje? É um pouco exagerado, mas você pode comparar alguns desses poemas curtos como posts de blogs ou tweets. Se pudéssemos andar nas ruas de Paris em 1750 veríamos pessoas cantando os acontecimentos em todo lugar. A música era um meio poderoso para comunicar notícias.
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