Vista da região a partir da antiga aldeia de Oing. Foto de Bruno Agostini / O Globo |
O famoso vinho Nouveau inspira um roteiro pelos sabores de Beaujolais, ao norte de Lyon
Em novembro, a safra 2014 chega às prateleiras do mundo todo
BEAUJEU - O almoço no restaurante panorâmico La Terrasse du Beaujolais, em Chiroubles, tinha todos os ingredientes necessários para o deleite completo. A mesa junto à parede de vidro garantia uma vista especial sobre os campos repletos de vinhedos da região, ao norte de Lyon. Estamos na área que é um parque de diversões para os amantes da boa gastronomia. O cardápio do chef Marc Rongeat tinha execução precisa e bons ingredientes, memorável desfile de receitas locais, como o trio de terrines com foie gras e o ovo “en meurette”, feito em molho de vinho tinto e bacon. A cereja do bolo, no caso, era líquida, e tinha até mesmo a cor desta fruta, e os perfumes dela: era uma respeitável seleção de vinhos de Beaujolais. Depois do rigoroso inverno deste ano, as tardes de sol alegram e colorem a região, fazendo despertar as parreiras de sua hibernação durante os meses mais frios. Os brotos verdes deixam viçosa a paisagem, que agora em breve terá as plantas em floração, que acontece em junho. Logo as frutas vão surgir, crescer, ganhar cor, amadurecer... A colheita acontece em setembro. E pouco depois alguns vinhos de 2014 já estarão sendo vendidos, celebração que corre o mundo.
Desde meados do século passado é assim: todos os anos, sempre na terceira quinta-feira de novembro (ou seja, exatamente daqui a seis meses) o lançamento do Beaujolais Nouveau é marcado por uma festa, e um impressionante sistema logístico que faz com que as garrafas cheguem a várias partes do mundo, inclusive o Brasil, no mesmo dia. Discussões à parte a respeito da qualidade deste vinho jovem, frutado, fresco e sem grandes pretensões, o fato é que de agora até a chegada do Nouveau às prateleiras é o melhor período para se passear por lá, acompanhando o trabalho nos vinhedos e aproveitando as temperaturas amenas.
O nome da área, e também do vinho em questão, é derivado da pequena cidade de Beaujeu, a antiga capital da região, onde encontramos uma estrutura modesta, como são as vinícolas locais, quase todas familiares, muitas abertas aos turistas.
Beaujolais é mignon. E o filé, em termos de cenário “urbano”, é a pequena aldeia de Oingt, com suas construções medievais em pedra dourada, um casario gracioso que é destino fundamental em qualquer roteiro pela região.
Apesar de seu estilo que mais parece uma vinícola da Califórnia do que da França, o Hameau Duboeuf é outro ponto de referência, essencial nos roteiros. Com o seu jeito de Disneylândia enófila, o complexo turístico desse que é um dos principais nomes de Beaujolais tem um museu muito interessante, e recursos audiovisuais nem tanto, com uma rica coleção de pôsteres etílicos, com cartazes de bebidas do século passado. No final do tour, prova de vinhos, ao som de uma trilha sonora eclética que pode incluir “Chorando se foi” em homenagem aos brasileiros, ou “Chevaliers de la table ronde", um clássico da cancioneiro popular (e embriagado) da França.
Cidades. Pedras douradas, azeites e aulas de cozinha
A visita começa na área de produção, onde são extraídos os óleos dos frutos. Pistaches, avelãs, amêndoas, nozes e pinoles, entre outros , passam por processos artesanais. Por mais que Jean-Marc Montegottero, dono da Huilerie Beaujolaise, se esforce, é preciso provar para crer.
- A região tem forte tradição na produção de azeites de castanhas. Mas depois da Segunda Guerra Mundial os moinhos acabaram. Havia 30 deles, três só aqui em Beaujeu. Restamos nós - diz o produtor.
Depois de acompanharmos parte do processo de produção, hora de subir para a lojinha bem cuidada, onde encontramos ainda uma seleção de vinagres e frutas, como manga e framboesa, ou vinho, como Banyuls. Degustar os óleos é impressionante, pela concentração de sabor, pelo perfume fino.
- Basta usar duas ou três gotas para cada prato. O de pistache enriquece muito uma receita de camarão, enquanto o de amêndoas vai bem com sopas - indica Jean-Marc, que faz questão de receber os visitantes.
A região é formada por vários pequenos lugarejos, como Beaujeu, que tem pouco mais de 2 mil habitantes. Na maioria dos casos as cidadezinhas estão nas planícies ou vales, com suaves elevações, que marcam a paisagem, acompanhando o traçado de algum rio, onde muitos moradores ainda pescam.
O ritmo da população corre lento como essas águas fluviais preguiçosas. A praça da prefeitura, Place de l’Hôtel de Ville, recebe torneios de pétanque, uma espécie de bocha adorada pelos franceses, especialmente nessas áreas, incluindo cidades mais ao sul, na Provence.
O calendário de festas se intensifica a partir de agora. Tem quermesse nos dois últimos fins de semana. Não faltam construções históricas, como a Église St-Nicolas, toda de pedra, material muito usado, em diferentes matizes, para as edificações dali.
No alto de uma colina, Oingt é uma daquelas cidadezinhas de sonho, listadas entre “les plus beaux villages de France”, ou seja, uma das mais belas da França. Merecidamente, que se diga. O cenário é marcado pelas construções de pedras douradas, as “pierres dorées”, que nesta época do ano se tornam ainda mais belas com as flores que colorem aquelas fachadas antigas que abrigam um comércio interessante como a cave Terroir des Pierres Dorées, que reúne vinhos e produtos gastronômicos locais.
Tanto charme e beleza atraíram uma grande população de artistas que enfeitam Oingt com seus ateliês e lojinhas de artesanato, como a pequena tecelagem de Christine Poirier, com belas roupas femininas. No dia 17 de julho a vila promete fervilhar, quando o Tour de France passa por lá.
Saint-Amour é uma das dez denominações de “cru” do vinho de Beaujolais, a que está mais ao norte. Seu vinho é deliciosamente delicado, cheio de fruta, condimentado. Um tinto delicioso para o verão. Mas a verdade é que, com um nome desses, o lugar acabou mais famoso mesmo entre casais apaixonados.
- Muita gente vem até a região, principalmente os japoneses, para se casar, ou renovar os votos de casamento. Ou, pelo menos, fazer uma foto na frente da igrejinha de Saint-Amour - diz Thierry Letortu, da Alliance des Vignerons Beaujolais, entidade que reúne cerca de 600 produtores da região. - Sem falar que o vinho Saint-Amour é um dos mais consumidos no dia de São Valentim - lembra ele, sobre 14 de fevereiro, data do Dias dos Namorados no mundo todo, menos no Brasil.
Existem vilas tão miúdas que mal aparecem nos mapas, como Le Perréon, cortada pelo Rio Vauxonne, que ali faz uma bifurcação. Para quem viaja com interesses gastronômicos, uma aula de cozinha no espaço La Cuisine de Fred é um dos programas mais divertidos que se pode fazer por lá. E saborosos. O chef Frédéric Valette recebe pequenos grupos em sua cozinha bem equipada para aulas de culinária que exploram o cardápio local.
- Na cozinha não existem segredos, o que há é cuidado, atenção e técnica. Nossos cardápios variam de acordo com a estação, e também com o gosto dos turistas, e com o tempo que eles podem se dedicar à aula - conta o chef, que me ensinou, entre outras cosias, a fazer um delicioso frango caipira com molho de bisque e ècrevisse (um tipo de camarão de rio).
Vinhos. Famílias e parque à la Disney
Embora existam várias denominações de alta qualidade em Beaujolais, como Fleurie, Côte de Brouilly, Morgon, Moulin-à-Vent e Saint-Amour, a região é mais famosa mesmo pelo seu “Nouveau”. Beber um desses pode até ser divertido, mas quem se dedicar a provar os vinhos dos “crus” locais pode se surpreender pela variedade de estilos e pela qualidade. Muitos produtores fazem vinhos em várias áreas, e em uma mesma vinícola é possível perceber, didaticamente, essas diferenças.
Pouca gente sabe, mas Beaujolais também produz um vinho branco, muito fresco, fácil de beber e de gostar, feito com a uva Chardonnay.
Os enófilos provavelmente terão mais prazer em visitar os pequenos produtores, ou aqueles não tão miúdos assim, mas com atendimento familiar e cortês, muitas vezes através do próprio enólogo que faz os vinhos, como acontece em propriedades como o Domaine du Clos des Garands, em Fleurie; o Château de Bellevue, em Morgon (ambos também são hotéis); e o Domaine Ruet, em Cercié.
Mas fazer um tour pelo Hameau Duboeuf é um programa desses imperdíveis. Se Walt Disney fosse fazer uma atração ligada ao vinho em seus parques, seria algo assim. O espaço está celebrando 20 anos. A visita inclui um belo acervo digno de um grande museu, com cartazes de bebidas espalhadas em uma sala e uma coleção de peças históricas que enriquece o programa. Um filme com Paul Bocuse e uma animação em 3D são perfeitamente dispensáveis, mas podem agradar às famílias. Terminamos num belo salão, com clima entre o faroeste e o cancã, com um bar que serve toda a linha da casa, onde é possível gastar um bom tempo, comparando cada terroir de Beaujolais (a maison também produz em outras áreas, como Rhône e Borgonha). Sabendo que um grupo do Brasil visitaria o lugar, fomos recebidos ao som de “Chorando se foi”. Simpático, mas eu preferia o hino do Flamengo, ou então alguma música francesa mesmo. No final, no melhor estilo parque temático, saímos através da lojinha que de tudo vende.
Quem gosta de vinhos mais encorpados pode procurar os de Moulin-à-Vent ou Morgon, talvez o mineral Côte de Brouilly. Mas, para quem tem pouco tempo e pretende ir direto ao ponto, Fleurie é o lugar. Segundo o crítico inglês Hugh Johnson, este é “a epítome de um Beaujolais cru: devem ser vinhos frutados, perfumados, sedosos e vigorosos”. Fato. Entre os bons nomes da região, que aceitam visitas em sua propriedade, está Jean-Paul Champagnon, autor de belos vinhos, e um Fleurie de respeito, dos melhores que já provei. São belos rótulos, com preço entre € 10 e € 16. Porque esta é uma grande virtude de Beaujolais: a tal relação qualidade-preço.
Restaurantes. Ponto estrelado no mapa gastronômico
Beaujolais está em um ponto privilegiado do mapa gastronômico mundial, uma confluência de estrelas. Em Roanne, um pouco a oeste, está a Maison Troisgros. A leste, em Vonnas, encontramos Georges Blanc e, um pouco mais ao sul, nos arredores de Lyon, ninguém menos que Paul Bocuse. Isso para falar apenas deste trio mítico, cada qual com as suas três estrelas Michelin. No meio disso tudo, Beaujolais, que pode servir de base para algumas das refeições mais memoráveis de sua vida.
Isso não significa que seja preciso sair de lá para se comer (muito) bem. Comer mal é difícil. Dos restaurantes com maiores pretensões gastronômicas até um simples “bouchon”, que significa rolha, e que é como eles se referem aos lugares que servem as especialidades locais, bebíveis e comestíveis, em ambiente tradicional, com preços atraentes. São dezenas deles espalhados pela região.
Um bom lugar para uma refeição é o Le Pré du Plat, em Cercié, que serve pratos como a salada lyonnaise, com ovo, bacon e croûtons.
Para um jantar elegante, com direito a perninhas de rã e ris de veau, o Château de la Barge, misto de hotel e restaurante, é uma das melhores indicações. Além da cozinha que já faz valer a visita, o lugar tem mesas externas para lá de agradáveis.
Hoje a maior cidade do pedaço é Villefranche-sur-Saône. Por grande entenda uma população de aproximadamente 35 mil pessoas. Para os que desejam explorar a região, tem posição geográfica estratégica, junto à principal estrada, além de uma boa infraestrutura de hotéis e restaurantes, como Le Juliénas, que ostenta estrela Michelin, do chef Fabrice Roche, para se provar as iguarias locais com tratamento fino.
E Fleurie, como emblema do vinho de Beaujolais, tem Le Cep, há quatro décadas um ícone da cozinha local.
Bruno Agostini viajou a convite da InterBeaujolais
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